sábado, 4 de junho de 2011

Sobre "O vagabundo na esplanada"

1 - O espaço

Ao contrário de muitas narrativas de Manuel da Fonseca (cfr. O Fogo e as Cinzas), O Vagabundo na Esplanada decorre em espaço urbano, lisboeta: primeiro acompanhamos o protagonista na avenida (actual Avenida da Liberdade) e depois nos Restauradores. Tal implica naturalmente a consequência de ela se passar num espaço social muito distinto do das narrativas alentejanas do mesmo autor.

2 - Acção

O começo ex-abrupto

Qualquer um de nós, se fosse contar esta história perante a turma, poderia começar assim: Eu vou contar a história de um vagabundo que há dias vi aqui em Lisboa e que era uma figura muito original… Etc. Depois prosseguiria mais ou menos ao modo de Manuel da Fonseca.

Mas na história, falta esta entrada, pois ela inicia-se ex-abrupto, abruptamente, sem preparação, mergulhando o leitor logo na acção - o que é muito vulgar em narrativas modernas.

Duas sequências

O conto é constituído por duas sequências: a primeira, quando o protagonista desce a avenida, e a segunda, quando ele se encontra na esplanada do café dos Restauradores. Nos dois casos, manifesta-se uma profunda oposição circunstantes-vagabundo.

O quiproquó, a ironia

A expressão latina qui pro quo significa equívoco, confusão de quem toma uma pessoa por outra. Nitidamente, o conto acaba com um quiproquó, que o leitor assume como irónico: um vagabundo maltrapilho, por equívoco, considera-se o cliente mais merecedor de ocupar a esplanada (destinada a pessoas de um estatuto económico acima dos limites da subsistência elementar, o que não era o caso dele).

3 - Personagens

O vagabundo

Não oferece dúvida que o vagabundo (com minúscula, pois ele é anónimo) seja o protagonista do conto. É-o um pouco passivamente, em particular na primeira sequência. O resto, que é o principal, são a sua postura, o seu modo de caminhar, os seus ares, e isso provoca grande perturbação quer nos transeuntes da avenida quer nos utentes da esplanada do café dos Restauradores.

O narrador idealiza-o muito; a gente duvida mesmo da possibilidade da existência dum “vagabundo” assim.

Releia-se o retrato desta original personagem e repare-se que primeiro o leitor apenas o “vê”, depois aprecia-o externamente (e já lhe descobre singularidades inesperadas) e por fim apercebe-se de alguns traços psicológico-morais seus, também eles singulares.

A partir do final da primeira sequência o vagabundo passa a ser referido como homem, até à exaustão – dez vezes. Falha de redacção? Intencional?

Os transeuntes e os clientes da esplanada

Se a descrição do vagabundo parece beneficiá-lo, a dos transeuntes e dos clientes da esplanada (personagens colectivas) parece dar deles uma ideia excessivamente negativa, mesmo cruel: do espanto inicial passam à inveja e rejeição quase racista, sem fundamento nos hábitos comuns dos portugueses.

Há paralelismo nas reacções dos transeuntes e dos clientes da esplanada.

Na perspectiva do conto, o marginal protagonista revela-se muito mais simpático ao leitor que as pessoas comuns, o que é verdadeiramente o mundo às avessas. Afinal as pessoas comuns são quem mantém os marginais, é a elas que eles recorrem nas mais variadas circunstâncias, pois eles não assumem a responsabilidade básica de garantir a sua subsistência.

Além disso, o café não é uma instituição de caridade ou domínio público, como a avenida, mas uma casa onde tem de haver regras que garantam a sua sobrevivência económica.

O empregado do café é um figurante.

O narrador é heterodiegético, não participante, e utiliza uma focalização externa, a de alguém, como que a de um dos circunstantes, particularmente atento ao que se passou e compreensivo para com o protagonista.

4 – O tempo

O tempo da história é reduzido a dois breves momentos, com um intervalo (elipse) de permeio. A sucessão das duas sequências segue a ordem linear do tempo.

O tempo cronológico leva-nos talvez para antes de 1974.

5 – Conto neo-realista

A narrativa neo-realista, que surge com o início da II Guerra Mundial, tem inspiração marxista e consequentemente intenta transformar as sociedades capitalistas no sentido do mundo utópico do socialismo (utópico, pois até hoje falharam todas as tentativas para o concretizar).

Situando frequentemente a acção em meios populares, onde as ideias comunistas não tinham implantação, esta narrativa recorre a um processo de oposição, de contraste entre uma personagem ou um grupo de personagens que, por quaisquer razões, questionam o meio ambiente e se aproximam das posições ideológicas do autor, e os circunstantes. É com certeza sobre este processo que assentam os exageros desta história – que intentam denunciar pretensos males do mundo capitalista.

Repare-se no desenlace: ele parece sugerir que afinal, se o vagabundo tem dinheiro para pagar a despesa, cessam as objecções à sua presença no café.

6 - Apreciação

Há três aspectos marcantes no conto: as singularidades do vagabundo, as violentas reacções dos circunstantes e o quiproquó do desenlace. Eles condicionam a adesão, conforme se aceitarem ou se recusarem.

A rejeição do vagabundo pelos circunstantes parece-nos exagerada e isso afecta o sentido da ironia final.

Manuel da Fonseca, que também foi poeta, na descrição do vagabundo recorre a expressões particularmente delicadas.

Algumas palavras sobre o conto "O Homem" de Sophia de Mello Breyner

A acção de O Homem decorre no movimentado “centro do centro da cidade” (do Porto). Fala de um homem anónimo, solitário no meio da multidão, que carrega uma criança invulgarmente bela, como aliás o mesmo homem. Mas a narradora acaba por fixar sobretudo o olhar do protagonista. Aquele olhar, ela conhece-o, melhor, reconhece-o.

Procurando nos escanos da sua memória, encontra-o associado às palavras de Cristo na cruz: “Pai, Pai, por me abandonaste?” (as palavras de Cristo na cruz foram as do Salmo 22, “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”) São as palavras de alguém no limite das forças, que já não espera qualquer socorro humano e se sente mesmo abandonado por Deus.

Quando isto descobre, a narradora volta para trás à procura do homem, mas o movimento da cidade dificulta-lhe a caminhada. Quando está já perto dele, ele tomba no chão. Ela apressa-se, mas agora, todas as pessoas que não tinham reparado nele se aglomeram em seu redor e ela não consegue aproximar-se. Em breve chega uma ambulância, que o leva.

O fecho do conto é em paradoxo: “O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas”.

O homem e a mulher nos limites da resistência humana estarão sempre connosco e a nós cabe-nos descobri-los e auxiliá-los, enquanto é tempo.

Breves notas sobre o “Retrato de Mónica” de Sophia de Mello Breyner

De acordo com o título, o Retrato de Mónica não é propriamente narrativo, mas descritivo. É um texto dominado pela hipérbole e pela ironia.


Ao contrário do que parece sugerir o ambíguo início do conto, a narradora tem perante a protagonista uma atitude muito negativa; Mónica é realmente um compêndio da maldade.


Ao recusar os três valores determinantes da poesia, amor e santidade, ela fica sem coração e torna-se uma impressionante máquina ao serviço da projecção social da sua figura.


Manipula o marido e redu-lo a um apêndice seu; torna-o um nulo, em vez de o valorizar.


Pratica obras de caridade porque parece bem, sem se interrogar porque é que as crianças a quem as suas obras de tricot são destinadas já morreram antes de receberem essa roupa.


Mónica tem uma relação muito particular com o Príncipe deste Mundo. Nem admira.


A expressão Príncipe deste Mundo tem origem no Evangelho de S. João (caps. 12, 14 e 16), onde designa o Diabo, o primeiro responsável por toda a maldade do mundo. Já se vê pois que o Príncipe deste Mundo do conto é uma figura em que a narradora concentra todo o mal. É a versão masculina e superlativada de Mónica.


O Príncipe deste Mundo corresponde sem dúvida ao Homem Importante de O Jantar do Bispo, primeira história da colecção dos Contos Exemplares.


Pela duríssima e exagerada ironia, o Retrato de Mónica aparenta-se com o poema da mesma Sophia As pessoas sensíveis.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Suspensão

Por razões alheias à vontade do seu autor, fica temporariamentre suspenso o acrescento de nova informação a esta página pessoal.
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J. Ferreira

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Um mover de olhos, brando e piedoso

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Um mover de olhos, brando e piedoso

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

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Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

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Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

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Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

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Dos textos de Camões até agora estudados, este é o segundo em que ele usa a primeira pessoa, em que põe em evidência a sua relação pessoal com a mulher a que alude. Neste sentido, há alguma aproximação ao que se passa com as Endechas a Bárbara. Mas mesmo em relação a esse poema, nota-se uma diferença: lá ele usa o presente, aqui pretérito. Lá ele fala duma experiência actual, em curso; aqui parece que tudo é passado.

Este poema compõe-se claramente de dois momentos, um constituído pelas três primeiras estrofes e outro pelo terceto final.

Nas três estrofes, é curiosa a presença constante do artigo indefinido catafórico. Ele antecipa, mas não dispensa aquele pronome esta, esse sim anafórico. Nessas estrofes, o sujeito poético reflecte, rememora os traços marcantes da sua antiga Circe, daquela que o enfeitiçou. Não faz propriamente o seu retrato, mas delineia-o. Ao longo delas, à parte a enumeração, um ou outro encavalgamento, os processos estilísticos estão quase ausentes: é como que uma análise em contemplação.

No terceto final, a chave de ouro, essa abunda em processos poéticos: as hipérboles, a antonomásia e a metáfora.

Repare-se na seriedade com que o poeta trata o tema amoroso… mesmo se ele já não faz a sua felicidade.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Sete anos de pastor Jacob servia

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Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela,

Mas não servia ao pai, servia a ela,

Que a ela só por prémio pretendia.

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Os dias na esperança de um só dia

Passava, contentando-se com vê-la:

Porém o pai usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

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Vendo o triste pastor que com enganos

Assim lhe era negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida,

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Começou a servir outros sete anos,

Dizendo: - Mais servira, se não fora,

Para tão longo amor tão curta a vida.

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Soneto narrativo, de assunto bíblico e pastoril (ou bucólico), esta história de um amor paciente, sofrido é muito ao modo de outras histórias, reais ou imaginadas, que Camões contou nos seus sonetos ou n’Os Lusíadas.

Actualmente, os poemas narrativos são menos comuns.

De notar os jogos de palavras, como “não servia ao pai, servia a ela”, um ou outro encavalgamento (do primeiro verso para o segundo, por exemplo), a repetida utilização do número simbólico bíblico sete, a introdução do discurso directo e da antítese na chave de ouro.

Veja aqui outros poemas camonianos de tema bíblico ou religioso.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Se Helena apartar

Se Helena apartar

Do campo seus olhos,

Nascerão abrolhos.

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A verdura amena,

Gados que paceis,

Sabei que a deveis

Aos olhos de Helena.

Os ventos serena,

Faz flores de abrolhos

O ar de seus olhos.

Faz serras floridas,

Faz claras as fontes...

Se isto faz nos montes,

Que fará nas vidas?

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Trá-las suspendidas

Como ervas em molhos,

Na luz de seus olhos.

Os corações prende

Com graça inumana;

De cada pestana

Ua alma lhe pende.

Amor se lhe rende

E, posto em giolhos,

Pasma nos seus olhos.

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Neste poema, Helena é uma mulher extraordinária. Ele parece começar onde acabam os “Verdes são os campos”, quando a jovem de lá já criava a erva que os gado comiam. O cenário bucólico é comum aos dois.

Notar o que há de atitude “poética” na confidência com a natureza.

O verso central das glosas divide o vilancete em duas partes. As magias anteriores, fá-las a jovem nos montes; o que se segue responde à pergunta: “que fará nas vidas?”

Se tomarmos a primeira parte em sentido mais ou menos denotativo, Helena é, pelo feitiço do seu olhar, aparentada com Orfeu, o poeta que com o seu canto levava atrás de si a natureza. Não será porém impossível tentar ler esses versos em sentido alegórico: verdura, gados, ventos, flores, serras, fontes, montes, falar-nos-iam do amor, da emoção, do gozo, do enamoramento produzidos pela presença de Helena entre os seus admiradores.

Neste caso, a segunda parte diria, em linguagem menos poeticamente cifrada, o que já estava dito na primeira. O feitiço do olhar da jovem mantinha-se igualmente activo.

O vilancete surge carregado de subtilezas, enigmático, em afirmações paradoxais – todo ele é paradoxal.

Atenção às hipérboles (haverá no poema alguma afirmação que não seja hiperbólica?), anástrofes, apóstrofes, anáfora, interrogação retórica... muitas imagens...