C. N’Os Lusíadas
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N’Os Lusíadas ocorre uma pequena galeria de mulheres: Vénus, a “linda Inês” (Inês de Castro), a “branca Tétis” do Adamastor, as Ninfas dos cantos IX e X com a sua chefe, Tétis (que não é a do Adamastor…). Os traços que as caracterizam são muito distintos.
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1. Vénus
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Vénus surge no Consílio dos Deuses olímpicos, no canto I, a bater-se pelos seus rasteiros interesses. Reaparece depois no Olimpo, no canto II, num papel também de pouca dignidade e num retrato de um realismo erótico que vem pouco a propósito (nua a bem dizer, apenas lhe pende da cintura um pano quase transparente):
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Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo colo que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino as almas acendia.
Polas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.
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Cum delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
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No canto IX, a deusa faz uma entrada moralista, bastante inesperada. E é com essa finalidade moralizadora que prepara a alegoria da Ilha dos Amores, onde há momentos de passageiro erotismo.
E vê do mundo todo os principais
Que nenhum no bem púbrico imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;
Vê que esses que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente.
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Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.
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(…)
Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
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2. Tétis
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No canto X, a apresentar a Máquina do Mundo (miniatura do Universo ao modo aristotélico-ptolomaico), a Tétis da Ilha dos Amores fala como um sábio teólogo:
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Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
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3. Outras figuras femininas
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A “linda Inês”: Camões transforma este conhecido exemplo histórico de malvadez numa nobre vítima da paixão, para cantar um tema muito seu, o dum grande amor com final infeliz. Veja-se no canto III o episódio respectivo.
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Tétis, uma semideusa cruel (o fracasso amoroso do Adamastor)
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Já néscio, já da guerra desistindo,
Ua noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis, única, despida.
Como doudo corri de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.
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Oh que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Qu'eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo!